Sobre a Entrevista da Ministra da Ciência no Expresso de 10.01.2004



Uma semana depois da publicação de uma entrevista da Ministra da Ciência e do Ensino Superior no Expresso de 10 de Janeiro de 2004 enviei para aquele semanário um artigo de opinião sobre o assunto.

Passaram-se mais três semanas e o artigo ainda não foi publicado.

Entretanto, em resposta a interesse manifestado pelo director de um dos Laboratórios Associados, preparei uma mensagem electrónica mais longa que enviei ao Conselho dos Laboratórios Associados a 23 de Janeiro.

Disponibilizo abaixo cópia dessa mensagem electrónica, na sequência de sugestões de vários colegas para a tornar acessível à comunidade científica.


Luis Magalhães

9.02.2004


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Ao Conselho dos Laboratórios Associados:

Ao rever correio electrónico reencontrei uma mensagem do Alexandre Quintanilha no correio dos Labs Associados em que manifestava interesse em saber o que eu pensava sobre a entrevista da Ministra da Ciência publicada no Expresso de dia 10. Como o artigo de opinião que enviei para o Expresso sobre o assunto ainda não apareceu, venho responder ao pedido do Alexandre, sugerindo que esta mensagem electrónica seja distribuída a todos os Labs Associados.

Infelizmente, dada a natureza burocrática do assunto resulta uma explicação longa, possivelmente muito mais do que merecia.

Na entrevista, a Ministra referiu uma auditoria a sistemas de gestão pela Direcção-Geral de Política Regional da Comissão Europeia que tinha decorrido nos quatro dias de 17 a 21 de Fevereiro de 2003 e levantou essencialmente as acusações seguintes sobre a gestão do POCTI: 1) Haveria projectos homologados pelo Ministro sem passarem pela estrutura de gestão, 2) Haveria homologações sem avaliação e sem concursos, em particular dos Laboratórios Associados, 3) O Ciência Viva não teria seguido os passos previstos no enquadramento do POCTI.

Naturalmente, nenhuma das acusações referidas é verdadeira. A minha primeira reacção foi de surpresa e grande indignação pelo nível a que estava a descer o combate político.

É claro que desde a entrevista já muita coisa aconteceu, pelo que está tudo a ficar mais claro. Em particular, soube-se pelos jornais que o MCES tinha disponibilizado na Internet, na véspera da entrevista, o relatório da auditoria, pelo que foi possível conhecer do que se estava a falar, e no fim-de-semana seguinte ocorreu o anúncio pós-Conselho de Ministros de aprovação de dois novos programas na área da ciência, no valor de mil milhões de euros para 2004-06 (com a referência de que se tratava do maior investimento em ciência alguma vez feito em Portugal!).

Começa-se agora a conhecer a verdade por trás destes acontecimentos, mas de qualquer modo aqui vai a minha contribuição.

Sobre os Labs Associados parece-me que não preciso de acrescentar nada. Todos sabemos que: 1) Candidataram-se nos termos previstos no Decreto-Lei que os definiu em Abril de 1999 que deu a todas as unidades de elevado mérito reconhecido nas avaliações o direito de se candidatarem a qualquer momento; 2) Tinham todos sido avaliados com mérito elevado por painéis internacionais, duas vezes (nas avaliações gerais de 1996 e 1999); 3) Adicionalmente, as candidaturas foram avaliadas pela FCT relativamente aos objectivos a prosseguir no âmbito das finalidades dos Laboratórios Associados, tal como estabelecido no mesmo Decreto-Lei; 4) Não se tratou de uma mera avaliação passiva tendo havido para cada candidatura um amplo período de exigências de melhorias de propostas na sequência de interacções sucessivas com a FCT; 5) Os financiamentos em acréscimo aos anteriormente aprovados para as unidades de investigação no âmbito do Programa de Financiamento Plurianual destinaram-se principalmente à contratação de novos investigadores doutorados, mediante um plano de contratações anualizado, com o objectivo de promover o emprego científico e a atracção e inserção de doutorados em instituições portuguesas; 6) Caso o plano de contratações não fosse concretizado, os financiamentos seriam deduzidos em conformidade.

Francamente, foi um processo irrepreensível e de grande exigência! O que foi irregular, e contrário à legislação em vigor, é ter sido cerceada a oportunidade de aprovação de novos laboratórios após Março de 2002, até às seis candidaturas que tiveram apreciações favoráveis nesse ano e permanecem sem resposta positiva.

Também me parece que todos sabemos como funcionava o Ciência Viva. A componente do POCTI relativa à promoção da cultura científica e tecnológica, está individualizada num dos três eixos programáticos desse programa com uma programação financeira própria da ordem de 10 milhões de euros por ano, destinada a acções múltiplas que incluíam, entre outras, apoios a: projectos de iniciação científica de alunos do ensino secundário e básico apresentados em concursos nacionais com avaliação externa, estágios de iniciação científica de estudantes do ensino secundário propostos por unidades de investigação, iniciativas de Ciência Viva nas Férias a que se candidatavam várias entidades, geminação de escolas com instituições científicas, Centros Ciência Viva em vários pontos do país, entre os quais se destacava o núcleo da rede de centros – o Pavilhão do Conhecimento.

É conhecido que o Programa Ciência Viva teve um enorme impacto e foi francamente inovador, tanto no nosso país como em âmbito internacional mais alargado, pelo que recebeu elogios no país e no estrangeiro, e viu algumas das suas acções pioneiras serem consideradas exemplares e adoptadas noutros países europeus. Esteve em funcionamento regular uma comissão internacional de avaliação deste programa que permitiu avaliá-lo amiúde.

A referência a aprovações sem avaliação é absurda. Foi precisamente à iniciativa do ministro de então e à acção da FCT, AdI e Ciência Viva que se ficaram a dever procedimentos de rigorosa avaliação externa, com a participação de cientistas estrangeiros, o que marcou uma diferença decisiva em relação ao passado e obteve elogios das agências congéneres estrangeiras e dos cientistas estrangeiros que conheceram os nossos sistemas de avaliação.

Quanto à suspeita levantada de que haveria projectos homologados pelo Ministro sem passarem pela estrutura de gestão, o que se passava efectivamente?

Por razões de eficácia, o gestor celebrou contratos-programa com três entidades com missões e competências específicas no sector que lhes atribuíram a gestão técnica, administrativa e financeira de componentes do POCTI: FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, AdI – Agência de Inovação, Ciência Viva – Agência Nacional para Promoção da Cultura Científica e Tecnológica. Estas entidades actuavam no estrito âmbito de planos de financiamento homologados pelo Ministro depois de apreciados pelo gestor e unidade de gestão, tinham de respeitar regulamentos relativos às acções que geriam os quais também eram homologados pelo Ministro após apreciação favorável do gestor e da unidade de gestão, e submetiam directamente a homologação do Ministro decisões sobre as correspondentes candidaturas. Os contratos-programa tiveram parecer favorável da unidade de gestão do POCTI, antes de homologados pelo Ministro, e eram do conhecimento da Comissão Europeia desde o início do programa.

O gestor e a unidade de gestão não eram ultrapassados nem viram diminuídas competências. Foram, sim, evitados procedimentos burocráticos obsoletos que comprometeram a execução nos primeiros anos do QCAII: 1994 e 1995. Na verdade, nestes dois anos que representaram 40% do total do período do QCA II (94-98) a execução financeira da vertente FEDER foi apenas de 10% do total do programa, realizada essencialmente na Medida 1 – “Reforço de Infra-estruturas” e em processos que transitaram do Programa Ciência do QCAI, já que execução nas medidas 2 e 3 relativas ao financiamento de projectos e de unidades de I&D foi praticamente nula tanto em 1994 como em 1995. Para resolver a incapacidade revelada pelos mecanismos de gestão desse período foram tomadas em 1996 e 1997 várias medidas de racionalização de gestão, entre as quais a celebração de contratos-programa com a FCT e a AdI, e em 1999 com a Ciência Viva. Estas medidas receberam referências positivas numa auditoria realizada pela Inspecção Geral de Finanças em 1997 que também criticou incisivamente os procedimentos de gestão anteriores. Assim, o esquema organizativo da gestão do POCTI resultou da experiência obtida com a correcção das insuficiências de gestão nos primeiros anos do QCAI que permitiu recuperar em 1997, 1998 e 1999 a comprometedora baixa execução anteriormente acumulada.

Em contraste com a baixa capacidade de concretização verificada no QCAII em 1994 e 1995, em Junho de 2002 o POCTI era o programa do QCAIII (00-06) com a mais elevada execução e a melhor concretização das metas inicialmente estabelecidas para indicadores de realização e de resultados, com óbvias vantagens para um bom nível de actividades da comunidade científica. Assim, apesar dos elevados cortes orçamentais que se verificaram no 2º semestre de 2002 e em 2003 e nos consequentes atrasos de pagamentos às instituições de investigação, o POCTI chegou até hoje com o maior nível de execução (um pouco superior a 50% do total previsto para os sete anos 2000-2006) entre todos os 18 programas operacionais do QCAIII.

Sendo assim, porquê o ataque na entrevista? E que pudessem ter sido postas em causa transferências comunitárias?

As razões só podem ser:

1. Toda a auditoria tem um ou mais contraditórios, até as questões levantadas ficarem completamente esclarecidas. Neste caso, o contraditório (que desconheço ainda hoje) não deve ter sido esclarecedor, competente e preparado atempadamente, exigindo as correcções necessárias e defendendo os interesses de Portugal no apoio ao desenvolvimento científico. O relatório é normal e carecia de esclarecimentos e correcções, o que também é normal. Acresce que as burocracias têm uma forte tendência para complicarem procedimentos sem prestarem atenção à realização de resultados, o que quando acontece deve ser contrariado.

2. É uma coincidência infeliz que estes ataques injustificados apareçam depois de ano e meio de retrocessos: não foi aberto em 2003 o concurso anual para projectos em todos os domínios, não foram aprovados Laboratórios Associados desde Março de 2002, não foi sequer avaliado o concurso para equipamento científico aberto de Dezembro de 2001 a Abril de 2002, não foram comunicados (nem transferidos) os financiamentos programáticos de unidades de investigação para o triénio com início em 1 de Janeiro do ano passado contrariando a regulamentação em vigor, os pagamentos a unidades de investigação na importante área das tecnologias de informação e comunicação estão atrasados um ano e meio o que quase as paralisou, há grandes atrasos em pagamentos a projectos de investigação em consórcio entre empresas e instituições científicas, houve iniciativas de novas empresas de inovação baseada em I&D que ficaram comprometidas por não receberem a tempo apoios aprovados em concursos públicos, em 2003 não houve o concurso anual para projectos Ciência Viva nas escolas que se realizava desde 1997, passou a haver apenas um concurso anual para bolsas de doutoramento em vez de dois como em 1998-2002, o número de bolsas e o apoio à atracção e inserção de doutorados diminuíram significativamente.

É óbvio que a principal razão deste enorme retrocesso reside nos significativos cortes no Orçamento do Estado (fundos nacionais mais fundos comunitários) tanto no orçamento rectificativo de 2002 como nos orçamentos aprovados em 2002 e 2003 para os anos seguintes. É preciso atribuir a suspensão do desenvolvimento do sector às causas que objectivamente a causaram e não sacudir água do capote para outros com ataques sem fundamento.

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Um desabafo final:

Quem leu o relatório de auditoria deve ter-se apercebido que se refere a procedimentos burocráticos. Pois bem, este tipo de relatório não é novidade. Já no Praxis havia questões levantadas por serviços da Comissão Europeia (CE), mas sobretudo pela Direcção-Geral de Desenvolvimento Regional portuguesa, que tinham a ver com a tendência de quererem aplicar à gestão da ciência esquemas de gestão dos projectos mais usuais para direcções-gerais de desenvolvimento/política regional (nacionais ou europeias), nomeadamente projectos de infraestruturas físicas rodoviárias, de transportes, de ensino, etc.

Quais eram as principais questões levantadas? Cinco: 1) Estranhavam a importância decisiva dada aos processos de avaliação externa pois as avaliações dos projectos nos outros programas operacionais eram geralmente feitas em reuniões da respectiva unidade de gestão que consistia em funcionários e representantes institucionais; 2) Estranhavam que fosse necessário haver na ciência milhares de projectos com pequenos montantes de financiamento pois o mais frequente noutras áreas é um reduzido número de projectos com elevados financiamentos; 3) Não compreendiam a necessidade de atribuição da gestão de componentes do programa a entidades especializadas que tivessem as competências e a experiência de gerir processos de avaliação científica e de acompanhamento de projectos de investigação, nem que a necessidade de descentralização de gestão fosse imperiosa quando havia um tão elevado número de projectos, mesmo tendo em conta que o gabinete do gestor só tinha cerca de seis técnicos; 4) Não entendiam a necessidade de consideração de despesas gerais (overheads) em projectos de investigação, nem mesmo quando se fazia notar que tal é o procedimento generalizado internacionalmente até na própria Direcção-Geral Investigação da CE; 5) Insistiam na ideia absurda de lançar informaticamente em bases de dados centralizadas cada uma das despesas individuais dos grupos e unidades de investigação, por mais pequenas e numerosas que fossem, e em contar como execução financeira do programa esses pagamentos dos “destinatários finais” dos apoios, em vez dos pagamentos das entidades que gerem carteiras de projectos como a FCT, a AdI e a Ciência Viva (aqui é curioso notar que nos processos de construção de edifícios, estradas, etc. aceitavam como execução os pagamentos a empreiteiros sem se preocuparem com as despesas destes com aquisições dos materiais de construção e outras).

Procurámos sempre resolver estas questões tendo em atenção os procedimentos apropriados à ciência e poupando a comunidade científica a esforços burocráticos evitáveis nos termos da legislação e regulamentação aprovada, contrariando decisivamente qualquer tentativa de burocratização infundamentada. Infelizmente, estes aspectos tinham tendência a ser recorrentes, o que levava a ter de os resolver várias vezes. Bem sei que não era fácil e exigia elevada persistência, preparação técnica e profundo conhecimento do enquadramento legislativo comunitário e nacional, mas fez-se. O que me parece é que nestes dois anos houve uma atitude diferente, de aceitação fácil de procedimentos burocráticos tecnicamente inapropriados a programas de ciência. Esta desistência de defender sempre procedimentos racionais e adequados e os interesses nacionais de uma eficiente gestão dos programas de ciência é que me parece preocupante!


Com os meus cumprimentos,


Luis Magalhães

23.01.2004